terça-feira, 18 de novembro de 2008

"Vou chorar sem medo, vou lembrar do tempo de onde eu via o mundo azul"

Dia desses, voltando para casa dirigindo, eis que tocou na Nova Brasil FM a canção Astronauta de Mármore, do grupo Nenhum de Nós. Essa música teve o poder de me levar aos meus 5 anos de idade. E essa sensação, aos poucos, foi me causando risos, choro e dor. Lembrei de como tive uma infância feliz. Daquelas que a gente sente saudade quase que diariamente. Daquelas que a gente, certamente, tentará levar até os nosso filhos. Apesar de ser "antiga" essa música, ela para mim também soou como algo bem atual. Afinal, quem não quer a chave para quebra o gelo? Ou uma chance de viver sem dor? Nossa... por mais que a dor nos fortaleça e nos faça enxergar o mundo de forma mais amadurecida, viver sem dor seria uma boa nesse mundo caótico que vivenciamos. Mas de que dor estou falando? A dor da alma. A dor da impotência de ver tanta barbaridade e não poder fazer nada. A dor de se decepcionar com alguém que, para você, estava acima do bem e do mal. A dor de um amor não correspondido. A dor de um passado que não volta mais. A dor de uma doce lembrança não cicatrizada. 

E nesse contexto,  lembro do texto "Eu sei, mas não devia", de Marina Colasanti, que já foi extremamente reproduzido por meu pai, quando eu era adolescente. Ele sempre dizia que "a gente se acostuma a coisas demais, mas não devia". E é justamente nisso que penso quase diariamente. Passamos a viver "num automático" capaz de banalizar e normalizar situações inaceitáveis a ponto de simplificarmos algo que é grandioso e violento. Passamos a aceitar essas situações para não sofrermos de solidão. Mas "solidão também não é estar no meio de mil pessoas e sentir falta de uma? " (risos, não resisti, lembrei de Amar é...) 

Vivemos com sede de pessoas, de sorrisos. Vivemos com sede de sermos aceitos, mesmo, para o outro, nem que isso nos custe colocar a nossa moral em xeque. Veja a que ponto nós chegamos! E nesse texto da Marina, que vou postar logo mais, ela elenca de maneira singular fatos do nosso dia-a-dia que são realizados sem qualquer tipo de pensamento prévio. Chega a ser involuntário. Eu também sei disso, mas não devia... 


*** A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. 

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(1972)

Astronauta de Mármore

Um comentário:

Rodrigo Carreiro disse...

Como eu sou chato, essa música é um assassinato à original, de David Bowie hheheh
Agora sério, falando sobre infância/adolescência, eu fui (infelizmente) ao SSA Shopping no sábado e fiquei com uma sensação tão ruim ao ver nossa juventude. Parece um papo de velho nostálgico, mas o que eu vi... Pelo amor de deus! As crianças/adolescentes se portando de uma maneira doentia, só posso falar isso. Cheguei ao absurdo de pensar que prefiro uma patricinha como filha do que uma do estilo que tô vendo hj em dia.